A propósito das medidas hoje avançadas por José Sócrates para combater o défice, e nas quais se inclui o fim da reforma vitalícia dos deputados e dos altos cargos públicos ao fim de 12 anos de exercício de funções, houve discussão forte e feia na sala que partilho com mais três raparigas de convicções fortes. A minha sala, posso confidenciar, é conhecida no meu burgo pela "sala da política".
O que vale é que empregos públicos, blogs privados. Neste Código a política só entra quando é da rua e nunca quando é de sede partidária.
Claro está que, numa discussão sobre os destinos do país, o colectivo dá sempre lugar ao privado e cada um toma as suas dores.
As dores paridas são esquecidas, testemunham há séculos as gerações de mulheres, mas as dores da vida... Essas são crónicas.
Para não variar, eu fui a do contra e ainda amuei. As minhas companheiras de cela acham mal retirar privilégios aos nossos representantes. A discussão acabou por extrapolar a questão das reformas, na qual até talvez estivessemos todas de acordo, e situar-se nos ordenados dos senhores deputados e dos altos cargos públicos.
Segundo as minha oponentes (devo dizer que são também minhas amigas, daí a perturbação que me causou a discussão), se os políticos não forem bem pagos, acima da média nacional (e já não são?) teremos cada vez mais representantes medíocres, que apenas vão para a política porque cá fora, no privado, não arranjaram melhor, e teremos cada vez menos homens e mulheres de valor, que fugirão para o privado, onde, aí sim, são compensados pela sua competência.
Portanto, amor à causa pública é coisa apenas para gente soberbamente bem paga, e a competência não é um requisito indiscutível em qualquer profissão, é só uma mais valia a ser recompensada...
Um presidente de câmara ganha mal? Ganha. O Presidente da República tem um ordenado ridículo, comparado com o do director de uma grande empresa? Claro que tem. Um deputado, com formação jurídica, pode ganhar muito mais num escritório de associados? É óbvio que pode, basta tratar de divórcios litigiosos.
E?...
A opção que tomaram, e que puderam tomar, o que é mais do que a maioria da população poderá dizer, traz as compensações monetárias e pessoais que lhe são inerentes. A política não dá para enriquecer, dizem-me. E devia dar? É isso que é suposto?
De acordo com a teoria do "pagar para ter bons governantes", teríamos ainda de pagar balúrdios a um autarca para que ele não pusesse dinheiro de empreiteiros e apartamentos ao bolso? Teríamos de pagar balúrdios a um presidente de um instituto público para que ele não desviasse verbas?
A seriedade e a honestidade são exigíveis a qualquer Homem de bem, mas a um Homem que nos representa, e que foi por nós eleito, só se pode exigir que seja de bem, senão fique em casa.
"A mim não me chateia nada que um director das finanças ganhe 25 mil euros por mês, desde que faça bem o seu trabalho!" Ouvi hoje dizer. Desculpem? Importam-se de repetir?
Pois a mim também não me chateava nada que um operário da construção civil, que se arrisca todos os dias a cair de um andaime, ganhasse 25 mil euros por mês, desde que fizesse bem o seu trabalho e não andasse a coçar a micose.
A mim também não me chateava nada que uma operária têxtil, que leva o salário minímo nacional para casa e ao fim de uns anos está com tendinite e a coluna feita num oito, ganhasse 25 mil euros por mês, desde que cumprisse as encomendas com brio.
A mim também não me chateava nada que um médico ganhasse 25 mil euros por mês, desde que cuidasse de cada doente com a competência técnica que a universidade e as notas de entrada lhe deram, e com a competênia humana que a vocação lhe deu.
A mim também não me chateava nada que um empregado de mesa ganhasse 25 mil euros por mês, desde que servisse com arte e simpatia todos os clientes.
É que não me chateava mesmo nada que professores, administrativos, camionistas, cantoneiros, electricistas, etc... ganhassem todos muito bem e que o ordenado mínimo nacional desse para fazer férias nas Maldivas.
Mas não pode ser pois não?
É precisamente a grande responsabilidade que os políticos têm às costas - decorrente da sua opção, das suas competências técnicas e das suas qualidades de tribunos, ou mesmo da arte de bem se movimentarem nos corredores do poder - que deve determinar os salários e as regalias que auferem. A tal responsabilidade, de que tanto me falaram hoje, tem às costas o povo. Para outras aspirações, levem às costas accionistas e consumidores, o que é uma opção tão nobre como a outra. A diferença é que na outra é o cidadão que paga.