O universo feminino permanece como um dos mais imutáveis da natureza. Apesar das revoluções, das épocas históricas obscuras e castradoras ou dos movimentos de emancipação, as gerações de mulheres têm sempre assegurado, na clandestinidade das hormonas, ou na apologia das mesmas, a essência do corpo em ‘S’ (curvas) e da mente em ‘Z’ (ziguezague).
Na caverna ou no Spa, roliça ou anoréctica, mãe ou libertina, a mulher é sempre um produto de estética, de conteúdo com forma, seja qual for a maneira como esta é contornada – do grosseiro lápis de carvão, ao cirúrgico computador.
É na alteração da forma (o conteúdo é matéria mais movediça a que não me atrevo hoje) que vamos sendo apanhadas a meio das modas. Eu, que nasci na década de 70, já apanhei algumas mudanças. Vivi-as de acordo com a idade, o círculo de relações e o número de páginas de revistas femininas lidas.
Apetece-me por agora falar de uma das variáveis do gráfico feminino que aprecio especialmente - a maquilhagem. Penso que é das variáveis que mais variou e nos avariou.
Quando era criança, a minha maior aspiração quando crescesse não era ser médica ou jornalista (isso vinha em segundo lugar), era crescer para me começar a pintar. Lembro-me, do alto dos meus 4, 5, 6... até aos 10 anitos, de delirar com as sombras azuis da minha madrinha, as unhas vermelhas da minha irmã, os batons garridos da D. Lurdes e as idas ao cabeleireiro onde a minha mãe pintava o cabelo. Tudo aquilo era lindo e a vida assim a cores, nuns 70 e princípios de 80 tão a preto e branco, adivinhava-me a tendência para procurar o ‘glamour’ num país que não era tão giro como o do Dallas e onde via muitas mulheres que andavam com umas camisolas de gola alta e os cabelos desgrenhados, que não tinham nada a ver com os Anjos de Charlie que eu idolatrava.
Veio o secundário. As expectativas de infância saíram goradas. Na minha adolescência rapariga que se pintasse era pirosa. Na escola quando não tínhamos aulas íamos para a praia, para o café ou ver lojas de roupa de praia, “à surfista” de preferência. Jamais naquela altura passaria pela cabeça das adolescentes escaparem-se para aquelas mega-lojas de maquilhagem e perfumaria experimentar a sombra rosa a dar com o top, ou o verniz vermelho igual ao da Madonna. A Madonna era a Madonna, as estrelas da revista “Bravo” eram as estrelas da revista “Bravo”, nós éramos miúdas e a maquilhagem era tabu. Ponto final, sem admissão a vírgulas ou reticências.
Veio a faculdade. As expectativas, que já não eram muitas, saíram outra vez goradas. Entretanto já me tinha passado um bocado a febre, e orgulhava-me voluntariamente à força de contribuir para as estatísticas de baixo consumo das portuguesas relativamente aos produtos de cosmética. Em compensação, ia a Espanha e vinha de lá a bater mal com a aparência daquelas 'guapas', que contrastava descaradamente com a das bandoletes, das sainhas compostas e do rosto saloio das lusitanas, que nem trigueiras conseguiam ser.
O lema na faculdade era ser simples. Ser “simples” em Portugal sempre teve muito significado. Uns dourados nas orelhas e umas roupas de marca eram o máximo que as estudantes davam. A maquilhagem, claro está, tinha de ser muito simples e não dar nas vistas, e preferencialmente à noite, quando se podia ser menos simples.
Fosse como fosse, as universitárias da minha geração seguiam o lema: “Não tenho paciência para isso, depois esqueço-me, esfrego-me e borro-me toda, e gosto da beleza natural”. A beleza natural também é muito importante em Portugal.
Veio o trabalho. Desforrei-me. Mulher crescida acompanhei o advento das grandes lojas e das grandes marcas. A MAC do Chiado foi uma bênção, mais a Sephora e outras mega lojas de perfumaria e cosmética. A desculpa era boa: “Tenho de estar apresentável”. A Cosmopolitan, a Elle e a Máxima também deram uma ajuda. Começou também a difusão dos programas televisivos sobre as futilidades do nosso género, as dicas, os truques, o look da moda. A par disso, as minhas cores de gaiata da praia/campo também foram desaparecendo e era a minha mãe que me aconselhava, como ainda hoje, a pôr “uma ‘corzinha’, que estás muito desmaiada filha”.
Hoje as mulheres portuguesas pintam-se mais, basta andar na rua para perceber isso. Geralmente pintam-se mal, mas isso é outra coisa.
Os homens portugueses, por seu turno, continuam com um grande grau de desconfiança em relação a isso. Conheço muitos que não gostam de ver, ou porque receiam que o “betume” tape uma demasiado evidente feiura natural ou porque têm medo que a pintura acrescente mais um factor de complexidade à já abstracta mente feminina. Não conheço bem as suas razões, mas prefiro não entrar pelo cliché machista, porque acho que nem sempre os homens o merecem.
Eu, apesar de toda a minha vocação infantil, acabei por nunca me pintar todos os dias, pelo menos com todos os requisitos, passos e pós exigidos. E assim me encontro, com mais olhos do que barriga. Tenho uma mala gigante cheia de pincéis, sombras, batons, bases, máscaras, blush... e não resisto a meter o dedo em tudo quanto é expositor, vidrada que fico nas cores e na infinidade de apetrechos e produtos, cuja aplicação às vezes até desconheço, e, no entanto, ando a maioria das vezes de cara lavada e com muito protector solar.
E não, não é que acredite na beleza natural. A beleza é só uma. A mais bela possível.