24.1.05

A defesa da vida (tal e qual como ela é)

Numa altura em que se fala tanto na defesa da vida, e muitos em redor dela se amotinam como mercadores de nacos de carne, achei que podia aqui falar de uma vida de 49 anos que ontem conheci. Quarenta e nove anos, não quarenta e nove dias, nem quarenta e nove semanas. Assim por extenso talvez pareça mais importante, embora não deva dar direito a referendo.

A vida em causa é feminina, está numa clínica e pouco mais dela sei que isto - foram-lhe retirados os ovários e o útero, devido a um gigantesco mioma; A médica disse-lhe que "parecia uma meloa". A paciente em causa é uma simpatia e parece aliviada agora que lhe saiu este peso de dentro. De mim é que não sai da cabeça a sua resposta quando lhe perguntei se o ginecologista nunca a tinha mandado fazer uma ecografia: "Eu nunca tinha ido a um ginecologista". Se não fosse um gastroenterologista, que desconfiou do inchaço demasiado evidente, esta mulher teria criado uma melancia. Isto não é para rir. Eu chorei.

A senhora está fora de perigo, e o caso dela, segundo me informaram, acontece geralmente sem razão aparente, mesmo àquelas que vão regularmente à consulta de ginecologia. Mas eu sei que o IPO está cheio de mulheres que por nunca terem feito uma citologia - um exame mais simples que análises ao sangue, que lhes diagnosticaria problemas simples de simples resolução - acabam por ter uma morte dolorosa, silenciosa e envergonhada.

É costume as vizinhas e os familiares dizerem que morreu com "um mal da barriga", e que a culpa deve ser do marido que andava com outras e que ela coitadinha sofria em segredo, ou então "sabe ela tinha vergonha, agora é que se fala mais nessas coisas, mas nós não fomos acostumadas nisso"... Muito triste. Muito revoltante.

Em defesa da vida:

Gostava que ouvir os políticos dizer que vão criar programas de sensibilização para o rastreio ginecológico;

Gostava de ouvir aquelas associações criadas à pressão para defender a vida pré-referendo alertar as mulheres para cuidarem do seu corpo e aprenderem a respeitar a sua própria vida (o resto virá por si);

Gostava que a igreja católica nas homilias, nos ridículos cursos de preparação para o matrimónio, na catequese, nos escuteiros, nos retiros de jovens, e demais eventos e movimentos de leigos, se preocupasse em alertar as mulheres para a importância da saúde dos seus órgãos de reprodução em vez de continuar a insistir noutros conselhos podres e inúteis, tais como o uso de métodos naturais de anti-concepção, a proibição do preservativo e demais dicas pró-vida... De que vida estarão eles a falar?

É que não me sai da cabeça a confissão daquela mulher de 49 anos.

Meu Deus, que povo este que ainda atravessa o deserto, sem ninguém que lhe dê água. Só "profetas da vida" e areia para os olhos.